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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

ARTHUR SCHNITZLER


PSICOLOGIA ›
RESGATE DO PENSAMENTO DE ARTHUR SCHNITZLER


“Se você perdoou é porque deixou de amar”

Amargos, quiçá demasiado lúcidos, os aforismos e reflexões de Arthur Schnitzler (Viena, 1862-1931) afundaram sua folha nas questões do amor, da solidão, da verdade, a mentira, a responsabilidade. Se atreverem explorar “o entre solo, o porão e a torre da casa da vida”.

Por Arthur Schnitzler *

As brigas amorosas raramente acabam numa paz verdadeira; normalmente se trata dum simples armistício que se concedem mutuamente as partes para enterrar a seus mortos. Logo, quando se reinicia a batalha, voltam a sacar à luz até aos mortos, e continuam lutando envoltos em vapores de decomposição.

O sentirmos amarrado e anelar constantemente a liberdade, e o fato de que tentemos amarrar a outras pessoas sem estar convencidos de ter direito a isso: é o que faz tão problemática toda relação amorosa. Tem compreendido? Tem perdoado? Tem esquecido? Não te confundas! O que acontece é que tem deixado de amar.

Uma regra para as dividas do amor: melhor deixar-las prescrever que cobrar-las demasiado tarde.

Um destino tragicômico: saber que nossa vida está arruinada e querer chorar essa desgraça precisamente no peito do quem causou a ruína.
Em toda relação erótica, os amantes intuem sempre a verdade e, embora, se obstinam em acreditar em todas as mentiras.

Nunca acredites poder confiar tanto na mulher à que amas, como para confessar - lhe teus sentimentos mais secretos. Se o fazes, não duvides de que se vingará, seja confessando a você os delas, seja ocultando-os.

O anseio mais doloroso: o que sentes por uma pessoa que se acredita tua, porém que você, em teu interior, sabe que não te pertence de todo. E a tristeza mais dolorida: a de ver a uma pessoa que perambula viva ao teu lado, mas para você faz tempo que morreu, sem saber-lo .

A sensualidade nos queria persuadir de que estávamos enamorados, porém a razão se resistia ao engano. Então a fantasia brindou sua oportuna ajuda.

Nas relações amorosas há duas fases que se sucedem quase sem solução de continuidade: uma, na que depois das discussões é melhor se reconciliar de imediato, já que ao fim e ao cabo o reencontro não pode demorar demasiado; e outra na que convêm aproveitar a primeira discussão que se apresente como pretexto para a ruptura, já que esta é inevitável.

O singular prazer de se arrojar em braços de outra justo quando se está vivendo a vertigem dum grande amor.

As disputas nas relações amorosas sempre surgem, no fundo, dos fundamentos em que estas se baseiam.

As relações humanas vindas a menos, muito em especial as do amor, tem às vezes seu orgulho de mendigo, ridículo ou comovedor, como fidalgos empobrecidos. Devemos respeitar sempre esse orgulho, porém nunca ferir-lo mostrando um interesse demasiado ostentoso.

Quando pouco a pouco um ser ao que ainda amas começar a perder para você a magia sexual, pode acontecer acaso um novo prodígio: que descubras ante você à criança que foi essa pessoa antes que a abraçarás como mulher. E então a amarás ainda mais que antes.

Uma mulher inteligente me disse uma vez: “Os homens sabem muito bem, sem ter que pensar-lo duas vezes, o que tem conseguido de nós; porém normalmente nem imaginam todo o que não tem conseguido”.

Às mulheres as fere mais nossa confiança que nossa desconfiança. Esta última só ofende sua honestidade, em tanto que o excesso de confiança é uma afronta a sua capacidade de sedução e a sua sensibilidade.

A mistura de sinceridade e mentira sempre da como resultado uma mentira; a mistura de força e debilidade, sempre debilidade, e a de bondade e maldade, sempre maldade. Pois o signo que se impõe é sempre o negativo. A diferença entre a álgebra e a psicologia consiste em que nesta, dois signos negativos nunca dão um resultado positivo.

Os vícios que exigem certo grau de valor são quase virtudes, sobre tudo ao lado das virtudes que só se exercitam por covardia.

Há quem leva uma dupla vida, dizem. Porém não é mais certo que só levando em aparência duas vidas diferentes conseguem viver uma vida inteira, verdadeira, é dizer, sua própria vida? Quantos, em troca, vivem meia vida, por falta de valor para viver uma inteira que possa parecer-lhes dupla aos demais.

O verdadeiro cumprimento do dever está às vezes em fazer mais e às vezes em fazer menos do que o dever nos exige. Esse é o problema ao que nos enfrentamos em todas as situações difíceis da vida.

A ninguém nos custa tanto perdoar como a quem em sua relação conosco, ainda sem querer, há feito aflorar a cara maligna de nossa natureza, e ainda mais se nos há dado a primeira ocasião de descobrir-la.

Um evento acontecido entre duas pessoas não é de todo irrevogável até o momento em que deixa de ser um segredo de ambos. Tão pronto como um terceiro adquire conhecimento do fato, e depois dele outras pessoas (o qual acontece por força em tais casos), aquele evento, que até agora era um assunto privado de duas pessoas, inicia uma nova vida nas almas alheias; reviste novas formas, adquire novos sentidos e perpetua seus efeitos, que acabam misteriosamente recaindo sobre aquelas duas pessoas entre as que tiveram lugar originalmente.

Igual que na vida do individuo, nas relações entre pessoas não existe nenhuma fase de descanso. Há um começo, um desenvolvimento, um zênite, um declive e um final, e como o individuo, doenças das mais diversas classes: moléstias, enfermidades congênitas, estados de esgotamento, achaques da velhice; muitas vezes não falta tampouco um toque de hipocondria. Muitas relações sucumbem a enfermidades da infância, inclusive a algumas que poderiam se prevenir com atenções e cuidados, é dizer, mediante uma higiene razoável; outras expiram na flor da idade por causa das seqüelas de antigas enfermidades; outras morrem tarde ou cedo devido a mal congênitos que raramente se diagnosticam a tempo. Algumas envelhecem depressa, outras devagar, e há as que estão aparentemente mortas, porém as podem devolver à vida com paciência, meios adequados e boa vontade. Porém há outra coisa em que as relações humanas coincidem com o ser humano: poucas sabem se resignar ao inevitável, afrontar com dignidade o sofrimento e a velhice e morrer com beleza.

Não basta com conhecer à gente, é fundamental saber decifrar também suas relações. Elas também dissimulam e se disfarçam se fecham hermeticamente. Só conhecerás a um individuo quando sejas capaz de ver-lo imerso na rede de suas múltiplas relações.

Por mais que uma pessoa te haja enganado, roubado ou caluniado, sempre existe a possibilidade de reconciliação, incluso, de que cheguem a ter mais adiante uma relação pura. Até com teu assassino te poderias chegar a entender estupendamente depois de cometido o crime; quiçá com ele mais que com ninguém. Só há uma pessoa à que eternamente não voltarás: a que não sabe o que te há feito, embora você já haja esquecido tudo.

Tomara as pessoas se vingam só pelo mal que lhes tem feito. Porém se vingam também quando se lhes faz um bem do que não se sentem dignas, ou pelo que não querem agradecer. E o pior, por ser um ato quase inconsciente, é quando se vingam por sua própria má consciência (da que, não sem razão, culpam ao outro).

Na hora de trair, a maioria das pessoas é mais pontual que nas horas de demonstrar sua felicidade. E ter que trair demasiado tarde pode custar-lhe mais caro que ignorar as exigências da felicidade.

Confessar algo significa, na maioria dos casos, um engano mais arteiro que ocultar-lo todo.

Às vezes é um engano maior ter nos braços à mulher amada que a outra.

Há quem da às costas a um amigo, à mulher à que ama ou a um dever, e o justifica com a fidelidade a si mesmo. Porém em muitos casos, isso não é mais que a forma mais cômoda e covarde do auto-engano. Muito poucos conhecem tão bem as leis de sua própria evolução pessoal como para saber se com essa infidelidade para com uma pessoa ou uma coisa não estão sendo ao mesmo tempo infiéis a si mesmos.

Quando o ódio se acovarda, sai à rua mascarado e se faz chamar justiça.

Quando uma pessoa à que no fundo de nossa alma não suportamos ganha nosso reconhecimento, nossa admiração, inclusive (por paradoxal que pareça) nosso amor, a aversão primeira que sentíamos se intensifica, e assim, o ódio busca e encontra muitas vezes seu alimento precisamente no que parece mais oposto a ele: na justiça.

O desejo, o imperativo ou incluso o anseio de viver, experimentar e padecer uma relação sentimental existe geralmente a priori, inclusive antes de haver achado o objeto digno ou anelado. E poucas pessoas são o bastante pacientes para esperar ao objeto adequado.

O amor aos filhos sempre é desgraçado; e mais, é o único que merece plenamente esse qualificativo. Basta com que nos atrevamos a lembrar. O amor que sentíamos a nossos pais pese a sua intensidade, não tinha também um componente de compaixão, quiçá incluso de repugnância? Não havia, ao fim, nesse amor algo emparentado com a aversão?

Quando uma relação que nasceu ao grande cai na mediocridade, não pode se prolongar se não é a custa de dolorosos e vergonhosos sacrifícios. É mais sábio dissolver sem mais o lar espiritual comum que deixar a pele no empenho por recortar-lo.

Numa relação enferma, igual que num organismo enfermo, até o fenômeno aparentemente mais nímio pode ser um sintoma.

Desde o ponto de vista da economia das relações humanas, é preferível se unir a uma pessoa pouco confiável mais doce que a uma pessoa fria, mas digna de confiança. Contra as pessoas pouco confiáveis há um remédio: conhecer aos seres humanos; em troca, a frialdade acaba congelando irremediavelmente todo vínculo até condenar-lo à esterilidade.

Toda relação amorosa atravessa três estágios que se sucedem imperceptivelmente: o primeiro, no que somos felizes estando juntos em silêncio; o segundo, no que nos aborrecemos estando juntos em silêncio; e o terceiro, no que o silêncio se faz carne e habita entre os amantes como um inimigo maligno.

A prática psicanalítica bajula a vaidade até extremos perigosos. A qualquer nimiedade se atribui uma importância desmesurada. Pessoas absolutamente banais se sentem interessantes fascinadas pelo valor que se lhes confere incluso os seus sonhos.

Existem mais tipos de solidão, mais puros, mais dolorosos, mais fundos, que os que acostumamos reconhecer. Nunca, no meio duma grande concorrência, depois dum momento de bem estar e diversão geral, todos os presentes se te tem figurado de repente fantasmas e você mesmo a única criatura real entre eles? Nunca tem percebido, em meio duma conversação interessantíssima com um amigo, a completa falta de sentido de todas vossas palavras e a nula esperança de que chegueis a se entender alguma vez? Nunca, quando descansas feliz nos braços da mulher que amas, tem notado inequivocamente que detrás de sua frente rondam pensamentos dos que não intuis nada? Todos esses tipos de solidão são piores que o costumamos chamar assim, é dizer, o estar sozinhos conosco. E é que essa solidão, comparada com todas aquelas outras, as verdadeiras, prenhas de inquietude, perigo e desesperação, é um estado prazenteiro e inocente. Estar juntos conosco mesmos deveria parecer-nos a forma mais suave e cômoda da sociabilidade.

Que deliciosa é a solidão quando sabemos que em algum lugar do mundo, ainda seja remoto, alguém nos anseia. Mas, é isso solidão? Não é mais bem uma forma de sociabilidade, a mais cômoda e irresponsável, que só sabe exigir e tomar, sem dar nada, e mais, nem sequer reconhecer sua divida?

Se cultivares com excessivo mimo o jardim secreto de tua alma, pode chegar a fazer-se demasiado exuberante, a desbordar o espaço que lhe corresponde e, pouco a pouco, a invadir outras regiões de tua alma que não estavam chamadas a viver em segredo. E assim pode ser que tua alma inteira acabe convertendo se num jardim fechado e, pese a seu esplendor e seu perfume, sucumba a sua própria solidão.

A maioria das pessoas vive no entre - solo da casa de sua vida, onde se tem instalado folgadamente, com bons aquecedores e todas as demais comodidades. Raramente baixam ao porão, onde intuem a presença de fantasmas que poderiam gelar-lhes o sangue; tampouco costumam subir à torre, pois sentem vertigem ao mirar abaixo e ao longe. Porém também há alguns que preferem viver precisamente no porão, porque se sentem mais a gosto na penumbra e o estremecimento que debaixo a luz e a responsabilidade, e outros desfrutam subindo à torre, para deixar se perder a vista em distâncias insondáveis que jamais alcançarão. Mas os mais desgraçados são aqueles que passam a vida correndo do porão à torre sem parar, em tanto as estâncias habitáveis da casa se lotam de poeira e de abandono.

Quem será capaz de compreender de todo estes três fatos inconcebíveis: que existe, que é ele e não outro e que antes não existia e um dia deixará de existir?


* De Relaciones y soledades (ed. Edhasa), edición de Joan Parra - Fonte: Página 12 – Buenos Aires - Argentina


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