O mundo da gente morre antes da gente
A vida que conhecemos começa a desaparecer lentamente, num movimento silencioso que se infiltra nos dias, junto com aqueles que fizeram da nossa época o que ela é
A expressão mais perfeita que conheço para explicar a brutalidade do acaso em nossas vidas é ainda a de Joan Didion. Ela disse, em simplicidade exata: “A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Joan, jornalista e escritora americana, escreveu essa frase em seu livro O ano do pensamento mágico, no qual narra a morte repentina do marido e a sua busca para compreender o incompreensível. Nos últimos dias, Renata, a mulher de Eduardo Campos, repetiria aos amigos: “Não estava no script”.
Não poderia estar no script. Poucos homens planejaram a sua carreira política de forma tão meticulosa quanto Eduardo Campos. E então, ele toma café com a família, embarca num avião para dar sequência à sua primeira campanha presidencial, aquela que poderia levá-lo à presidência do Brasil não agora, mas em 2018, e morre. O gesto largo de uma vida interrompido num instante. Antes do final da manhã ele já não está. E os brasileiros de qualquer ideologia, ou sem nenhuma, são atravessados pela tragédia. A do homem perdido, em seu momento de máxima potência, mas também a de ser atingido pela força do incontrolável. Penso que cada um de nós, ou pelo menos a maioria, sentiu a lufada de vento entre as costelas, aquela que está sempre ali, mas fingimos que não existe.
De fato, a morte – repentina ou penosa, como nas doenças prolongadas, precoce ou tardia – é, como sabemos, a única certeza do nosso script. Um dia, simplesmente, já não se está. Como na cena do documentário de João Moreira Salles em que Santiago, o mordomo que dá título ao filme, cita o cineasta Ingmar Bergman: “Somos mortos insepultos, apodrecendo debaixo de um céu cruento e vazio”.
O drama de quem alcançou a promessa de uma vida longa é a solidão de estar vivo numa vida que já morreu
Se fizéssemos um retrato agora, de todos os vivos, teríamos também um obituário: daqui a 100 anos estaremos todos mortos. Olhamos pela janela e todos os que vimos em seu esforço cotidiano, carregando-se para o ponto de ônibus, sintonizando a rádio preferida ao sentar-se no carro, puxando assunto na padaria ou desferindo seu ódio e seu medo em pequenas brutalidades serão finados (palavra de tanto simbolismo), em menor ou maior prazo. Assim como finado será aquele que espia a única paisagem que não muda numa vida humana, a de que, para o indivíduo, o futuro está morto.
A verdade, que talvez nem todos percebam, é que se morre aos poucos. Não apenas pela frase clássica de que começamos a morrer ao nascer. De que cada dia seguinte arrasta o cadáver do dia anterior. De que cada amanhã é um dia a mais – mas porque é um dia a menos. Ao entrevistar os que envelheceram, descubro-os surpreendidos pelo drama menos nítido, aquele se infiltra lentamente nos interstícios dos dias: o de que o mundo da gente morre antes da gente.
Esse é o susto de quem alcançou a promessa da nossa época, a de uma vida longa. A de morrer só, mesmo quando cercado por filhos e netos. Só, porque aqueles que sabiam dele, aqueles que compartilharam o mesmo tempo, morreram antes. Aqueles que conheceram o menino, o levaram embora ao partir. Os que o viram jovem carregaram a sua juventude em lembranças que desapareceram porque já não há quem delas possa lembrar. Só, porque um certo modo de estar no mundo acabou antes. A solidão de estar vivo numa vida que já morreu.
Pouco antes de lançar O ano do pensamento mágico, Joan Didion perdeu a única filha. Depois do marido, a filha. Era a dor não nomeável da inversão da lógica, a de sepultar aquela que deveria sepultá-la. Mas era algo ainda além, o de se tornar a mulher que restou. Seu livro seguinte, Noites Azuis, fala dessa condição, a de ter sobrado viva ao envelhecer. A de se descobrir só e frágil, atenta aos degraus para não cair. Para mim, é um livro melhor do que o primeiro, mas diz de algo ainda mais duro do que a perda do companheiro de uma vida. Talvez tenha feito menos sucesso por falar dessa dor insuportável, em que viver mais do que os seus afetos é ter de viver a morte que ultrapassa a morte.
Pensava que essa era uma condição restrita à velhice. A surpresa final de que o melhor cenário, o de viver mais, era também o de perder mais. Mas descobri que esse morrer começa muito antes. E de forma ainda mais insidiosa. Esses meses de 2014 têm nos mostrado isso com uma força talvez maior. É uma coincidência, claro, não uma confluência escrita nas estrelas ou em qualquer profecia. O mundo da gente, em especial das gentes com mais de 40 anos, porque é nessa altura que sentimos que já temos um passado e o futuro é uma segunda metade incerta, tem morrido muito. E rápido, às vezes um sobressalto por dia, às vezes dois.
Há algo de desestabilizador no ato de testemunhar o momento exato em que um imortal morre.
Cada um tem seu susto. Acho que o meu foi com Nico Nicolaiewsky, que levava junto com ele momentos em que fui completamente feliz – e são tão raras as vezes em que somos completamente felizes – assistindo aTangos &Tragédias no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Morreu cinco dias depois de Eduardo Coutinho e Philip Seymour Hoffman, dois gigantes. Cada um com sua tragédia, abriram um buraco na paisagem do mundo. Depois, José Wilker um dia não acordou. E não haveria Vadinho para me assombrar.
Não parou mais. De repente o mundo já não tinha mais Gabriel García Márquez, Jair Rodrigues, Alan Resnais, Paco de Lucia, Shirley Temple, Luciano do Valle, Nadine Gordimer, Paulo Goulart, Bellini, James Garner, Rose Marie Muraro, Max Nunes, Plinio de Arruda Sampaio, Lauren Bacall. No espaço de seis dias de julho, Rubem Alves, João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna desapareceram. Rubem Alves, que desfazia anos nos aniversários e dizia que “a hora para comer morangos é sempre agora”. De repente o mundo já não tinha Vange Leonel. Como é possível? Eu a tinha lido no Twitter um instante atrás. E Nicolau Sevcenko se foi horas depois de Eduardo Campos.
Nenhuma dessas pessoas convivia comigo, eu não frequentava a casa de nenhuma. A maioria delas nunca sequer vi. De fato, o que delas vive em mim independe de sua existência física. Algumas são apenas flashes de um cotidiano em que por décadas elas apareceram, seja em novelas, na narrativa de um jogo de futebol, num debate político. Outras, me constituem. Seus livros e músicas não têm idade, nos filmes ainda são jovens e belas. Concretamente, deveria fazer tão pouca diferença estarem ou não aqui, na miudeza dos dias, numa rotina que de qualquer modo não faria parte da minha, quanto Sófocles, que morreu mais de dois mil e quatrocentos anos atrás, ou Shakespeare ou Beethoven ou Picasso. Ou Machado de Assis. Ou mesmo Garrincha. Estes, que conseguiram transcender sua vida ao proporcionar transcendência pela grandeza de sua obra, para as sucessivas gerações, ao infinito, são imortais. É um fato, todo mundo sabe, mas descubro que não é bem assim.
Qual é a diferença de Gabriel García Márquez estar vivo ou morto, se a chance de eu tomar um café com ele era remota e sempre vou ter meuO amor nos tempos do cólera na estante, para que ele possa reviver em mim? O que percebo é que há uma diferença. Há algo de melancólico, desestabilizador, em testemunhar o momento exato em que um imortal morre.
Suspeito que, naquele momento-limite em que a vida se extingue, a permanência da obra faça pouca diferença. Talvez o imortal que morre trocasse toda a sua imortalidade por dividir uma última vez uma garrafa de vinho com o melhor amigo ou por mais uma noite de amor lambuzado com a mulher que ama ou apenas para ler o jornal na mesa da cozinha no café da manhã. Talvez o imortal fique mortal demais nessa hora, fique parecido demais com todos os outros. Como disse Woody Allen: “Não quero atingir a imortalidade através de minha obra. Quero atingi-la não morrendo”. E desde então temo me confrontar com seu obituário numa manchete na internet.
De certo modo, é assim que o mundo da gente começa a morrer antes da gente. Não apenas pela perda dos nossos afetos de perto, mas também pelo filme que Philip Seymour Hoffman não fará ou pelo livro que Ariano Suassuna não escreverá enquanto dividimos com ele o mesmo tempo histórico. Ou simplesmente por nenhum deles poder dizer mais nada de comezinho ou mesmo fazer alguma besteira, qualquer coisa de humano. Deles ficaremos só com o que foi grande, mesmo a bobagem terá de ser relevante para merecer permanecer na biografia. Ao mesmo tempo em que a morte os devolve de imediato à condição humana, os tira para sempre dela. E logo o boteco de João Ubaldo já não terá cheiro.
A primeira vez que senti a infiltração de algo irreversível no meu mundo foi a morte de Marlon Brando, dez anos atrás. A morte ainda não me bafejava como hoje, mas passei alguns dias prostrada por alguém que para mim já tinha nascido imortal. Percebi então que fazia diferença lembrar dele berrando “Steeeeeeeela” em Um bonde chamado desejo e, ao mesmo tempo, poder mencionar qualquer coisa boba como: “Nossa, como ele está gordo agora”. De repente, ele não podia mais engordar nem nos espantar com sua existência descuidada. Só restaria grandioso. E, portanto, fora da vida. (Da nossa vida.)
Marlon Brando, como García Márquez, como Ariano Suassuna, como tantos agora, não se sabiam meus, mas eram. Ao me deixarem, morro um pouco. Uma versão de nós morre sempre que morre alguém que amamos e que nos ama, porque essa pessoa leva com ela o seu olhar sobre nós, que é único. Uma parte de nós também morre quando não podemos mais compartilhar a mesma época com quem fez do nosso mundo o que ele é. E agora, fico esperando a cada momento uma nova notícia, porque sei que elas não mais deixarão de chegar.
Tive uma reação estranha ao saber da morte de Robin Williams. Quantos anos ele tinha?, perguntei primeiro. Sessenta e três. E me senti apunhalada com a resposta. Muito cedo, muito cedo. De que morreu? Parece que foi suicídio. E me senti de imediato aliviada. Pode parecer surpreendente, mas meu alívio se deu porque de que alguma maneira era uma escolha. Não era coração, não era câncer, não era AVC, não era avião. Por mais terrível que seja o ato de interromper a vida, ele pressupõe, em alguma medida, uma potência e um controle.
Ao mesmo tempo em que a morte devolve aqueles que admiramos à condição humana, os tira dela para sempre
Pode-se argumentar que uma depressão ou um desespero impede a escolha, mas acho que essa não é toda a verdade. Nossas escolhas nunca são consumadas em condições ideais nem nosso arbítrio é totalmente livre. Só conseguimos fazer escolhas determinadas pelas circunstâncias do que vivemos e do que somos naquele momento. Por mais que nos surpreenda a escuridão do homem que nos deu tanta alegria, de algum modo ele elegeu a hora de morrer. O que para muitos foi razão para aumentar a dor pela sua morte, porque ela poderia ter sido evitada, para mim foi alívio por ele não ter sua vida interrompida à revelia. De algum modo, me soaria mais insuportável se Robin Williams tivesse morrido tão cedo por um infarto ou um acidente.
Acredito mais na interpretação do jornalista americano Lee Siegel, quando ele diz que “talvez tenha sido a empatia que o matou – e não seu desespero com o diagnóstico recente de Parkinson”. A capacidade de Robin Williams para vestir a pele do outro, de todos os outros, levada por ele a patamares quase insuperáveis. “Sua necessidade passional de se transformar em todos que ele encontrava, qualquer que fosse sua origem étnica ou social – como se com isso pudesse vencer sua solitária e irreversível finitude humana.” Há algum tempo o lento morrer do seu mundo o assombrava, segundo os mais próximos Robin parecia incapaz de superar o desaparecimento do amigo e do homem que o inspirou, o comediante Jonathan Winters, que se foi em abril.
Seus fãs, as pessoas cuja vida a sua vida tornou melhor, deixaram flores nos lugares em que viveram seus personagens. Um banco de praça em que gravou cenas de O Gênio Indomável, com Matt Damon. A casa em que foi Ms. Doubtfire, a babá. Era ali que ele morria para nunca morrer. Era ali que ele jamais deixaria de estar. Não há lugar para a morte. Como haveria lugar para a morte? Mas é preciso dar um lugar à morte para que a vida possa continuar. É para isso que criamos nossos cemitérios dentro ou fora de nós. Em geral, mais dentro do que fora. A vida é também carregar os mortos no último lugar em que podem viver, em nossas memórias. E aos poucos nos tornamos um cemitério cada vez mais habitado por aqueles que só vivem em nós.
A morte de Robin Williams, Gabriel García Márquez, Ariano Suassuna e de tantos levou um pouco de mim. Minha morte levará um pouco deles e de tantos, como a lembrança das lágrimas que chorei ao ver Sociedade dos poetas mortos ou a imagem de Aureliano Buendía que só eu tinha ou a minha pedra do reino. Morro um pouco com cada um deles porque vivi um pouco com cada um deles.
É essa a morte silenciosa que vai se alastrando pelos dias. Conto meus imortais ainda vivos, os de longe e os de perto. Digo seus nomes, como se os invocando. Peço que não se apressem, que não me deixem só, que não me deixem sem saber de mim. O acaso, a vida que muda num instante, me assusta tanto quanto esse meu mundo que morre devagar. É essa a brisa quase imperceptível que adivinho soprando nos meus ossos. Muitas vezes finjo que não a escuto. Mas ela continua ali, intermitente, sussurrando para eu não esquecer de viver.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: elianebrum.com Email:
elianebrum.coluna@gmail.com Twitter:
@brumelianebrum
Versión en español
Nuestro
mundo muere antes que nosotros
La vida que conocemos comienza a desaparecer
lentamente, en un movimiento silencioso que se infiltra en los días, junto con
aquellos que hicieron de nuestra época lo que ella es.
La expresión más perfecta que conozco para
explicar la brutalidad del acaso en nuestras vidas es todavía la de Joan
Didion. Ella dice, en simplicidad exacta: “La vida cambia en un instante. Usted
se sienta para cenar y la vida que usted conocía acaba de repente”. Joan,
periodista y escritora americana, escribió esta frase en su libro “El año del
pensamiento mágico”, en el cual narra la muerte repentina del marido y su
búsqueda para comprender lo incomprensible. En los últimos días, Renata, la
mujer de Eduardo Campos, repetiría a los amigos: “No estaba en el script”.
No podría estar en el script. Pocos hombres
planearon su carrera política de forma tan meticulosa cuanto Eduardo Campos. Y
entonces, él toma café con la familia, embarca en un avión para dar continuidad
a su primera campaña presidencial, aquella que podría llevarlo a la presidencia
de Brasil no ahora, pero sí en 2018, y muere. El gesto amplio de una vida
interrumpido en un instante. Antes del final de la mañana él ya no está. Y los
brasileños de cualquier ideología, o sin ninguna, son atravesados por la tragedia.
La del hombre perdido, en su momento de máxima potencia, pero también la de ser
alcanzado por la fuerza de lo incontrolable. Pienso que cada uno de nosotros, o
por lo menos la mayoría, sintió la ráfaga del viento entre las costillas, aquella
que está siempre allí, pero fingimos que no existe.
De hecho, la muerte – repentina o penosa,
como en las enfermedades prolongadas, precoz o tardía – es, como sabemos, la
única certeza de nuestro script. Un día, simplemente, ya no se está. Como en la
cena del documental de João Moreira Salles en que Santiago, el mayordomo que da
título al film, cita al cineasta Ingmar Bergman: “Somos muertos insepultos,
pudriéndonos debajo de un cielo cruento y vacío”.
El drama de quien alcanzó la promesa de una
vida larga es la soledad de estar vivo en una vida que ya murió.
Si hiciésemos un retrato ahora, de todos los
vivos, tendríamos también un obituario: de aquí a 100 años estaremos todos muertos.
Miraremos por la ventana y todos los que vimos en su esfuerzo cotidiano, caminando
para la parada de ómnibus, sintonizando su radio preferida al sentarse en el
auto, conversando en la panadería o difiriendo su odio y su miedo en pequeñas
brutalidades serán finados (palabra de tanto simbolismo), en menor o mayor plazo.
Así como finado será aquel que espía el único paisaje que no cambia en una vida
humana, el de que, para el individuo, el futuro está muerto.
La verdad, que tal vez no todos perciban,
es que se muere de a poco. No apenas por la frase clásica de que al nacer comenzamos
a morir. De que cada día siguiente arrastra el cadáver del día anterior. De que
cada mañana es un día más – más porque es un día menos. Al entrevistar a los
que envejecieron, los descubro sorprendidos por el drama menos nítido, aquel que
se infiltra lentamente en los intersticios de los días: el de que nuestro mundo
muere antes que nosotros.
Ese es el susto de quien alcanzó la promesa
de nuestra época, la de una vida larga. La de morir solo, incluso estando
rodeado de hijos y nietos. Solo, porque aquellos que sabían de él, aquellos que
compartieron el mismo tiempo, murieron antes. Aquellos que conocieron al niño, se
lo llevaron con ellos al partir. Los que lo vieron joven cargaron su juventud
en recuerdos que desaparecieron porque ya no hay quien se pueda recordar de
ella. Solo, porque un cierto modo de estar en el mundo acabó antes. La soledad
de estar vivo en una vida que ya murió.
Poco antes de lanzar “El año del pensamiento
mágico”, Joan Didion perdió a su única hija. Después del marido, la hija. Era
el dolor innombrable de la inversión de la lógica, el de sepultar a aquella que
debería sepultarla. Pero era algo todavía más allá, el de transformarse en la
mujer que sobró. Su siguiente libro, Noches Azules, habla de esa condición, la
de haber sobrado viva al envejecer. La de descubrirse sola y frágil, atenta a los
escalones para no caer. Para mí, este libro es mejor que el primero, pero habla
de algo aún más duro que la pérdida del compañero de toda una vida. Tal vez haya
tenido menos éxito por hablar de ese dolor insoportable, en que vivir más que sus
afectos es tener de vivir la muerte que supera a la muerte.
Pensaba que esa era una condición restricta
a la vejez. La sorpresa final de que el mejor escenario, el de vivir más, era
también el de perder más. Pero descubrí que ese morir comienza mucho antes. Y
de una forma aún más insidiosa. Estos meses de 2014 nos han mostrado eso con una
fuerza talvez mayor. Es una coincidencia, claro, no una confluencia escrita en
las estrellas o en cualquier profecía. El mundo de nosotros, en especial el de
aquellos con más de 40 años, porque es a esa altura que sentimos que ya tenemos
un pasado y el futuro es una segunda mitad incierta, ha muerto mucho. Y rápido,
algunas veces un sobresalto por día, algunas veces dos.
Hay algo de desestabilizador en el acto de
testimoniar el momento exacto en que un inmortal muere.
Cada uno tiene su susto. Creo que el mío
fue con Nico Nicolaiewsky, que se llevaba
junto con él momentos en que fui completamente feliz – y son tan raras las
veces en que somos completamente felices – asistiendo a Tangos & Tragedias en
el Teatro São Pedro, en Porto Alegre. Murió cinco días después de Eduardo
Coutinho y Philip Seymour Hoffman, dos gigantes. Cada uno con su tragedia, abrieron
un buraco en el paisaje del mundo. Después, José Wilker un día no despertó. Y
no habría Vadinho para asombrarme.
No paró más. De repente el mundo ya no
tenía más a Gabriel García Márquez, Jair Rodrigues, Alan Resnais, Paco de
Lucia, Shirley Temple, Luciano do Valle, Nadine Gordimer, Paulo Goulart,
Bellini, James Garner, Rose Marie Muraro, Max Nunes, Plinio de Arruda Sampaio,
Lauren Bacall. En el espacio de seis días de julio, Rubem Alves, João Ubaldo
Ribeiro y Ariano Suassuna desaparecieron. Rubem Alves, que deshacía años en los
aniversarios y decía que “la hora para comer frutillas es siempre ahora”. De
repente el mundo ya no tenía a Vange Leonel. ¿Cómo es posible? Yo la había leído
en Twitter un instante atrás. Y Nicolau Sevcenko se fue horas después de Eduardo
Campos.
Ninguna de esas personas convivía conmigo,
yo no frecuentaba la casa de ninguna. A la mayoría de ellas nunca ni siquiera las
vi. De hecho, lo que de ellas vive en mí no depende de su existencia física. Algunas
son apenas flashes de un cotidiano en que por décadas ellas aparecieron, sea en
novelas, en la narración de un juego de futbol, en un debate político. Otras,
me constituyen. Sus libros y músicas no tienen edad, en los filmes todavía son
jóvenes y bellas. Concretamente, debería hacer tan poca diferencia estar o no
aquí, en la pequeñez de los días, en una rutina que de cualquier modo no haría
parte de la mía, cuanto Sófocles, que murió más de dos mil cuatrocientos años
atrás, o Shakespeare o Beethoven o Picasso. O Machado de Assis. O incluso Garrincha.
Estos, que consiguieron transcender su vida al proporcionar transcendencia por
la grandeza de su obra, para las sucesivas generaciones, al infinito, son inmortales.
Es un hecho, todo el mundo lo sabe, pero descubro que no es tan así.
¿Cuál es la diferencia de que Gabriel
García Márquez esté vivo o muerto, si la chance de que yo tomara un café con él
era remota y siempre voy a tener mi “El amor en los tiempos del cólera” en el
estante, para que él pueda revivir en mí? Lo que percibo es que hay una diferencia.
Hay algo de melancólico, desestabilizador, en testimoniar el momento exacto en
que un inmortal muere.
Sospecho que, en aquel momento límite en
que la vida se extingue, la permanencia de la obra haga poca diferencia. Tal vez
lo inmortal que muere cambie toda su inmortalidad por dividir una última vez
una botella de vino con el mejor amigo o por una noche más de amor embadurnado
con la mujer que ama o apenas por leer el diario en la mesa de la cocina en el
desayuno. Tal vez lo inmortal sea demasiado mortal en esa hora, sea parezca
demasiado con todos los otros. Como dice Woody Allen: “No quiero alcanzar la inmortalidad
a través de mi obra. Quiero alcanzarla no muriendo”. Y desde entonces temo
encontrarme con su obituario en un titular en internet.
De cierto modo, es así que nuestro mundo comienza a morir antes que
nosotros. No apenas por la pérdida de nuestros afectos más próximos, sino también
por el film que Philip Seymour Hoffman no hará o por el libro que Ariano
Suassuna no escribirá en cuanto dividimos con él el mismo tiempo histórico. O
simplemente porque ninguno de ellos pueda decir más nada desde el principio o
incluso hacer alguna burrada, cualquier cosa de humano. De ellos nos quedaremos
solo con lo que fue grande, incluso las sandeces tendrán que ser relevantes
para merecer permanecer en la biografía. Al mismo tiempo en que la muerte los
regresa de inmediato a la condición humana, los tira para siempre de ella. Y
luego el boliche de João Ubaldo ya no tendrá olores.
La primera vez que sentí la infiltración de
algo irreversible en mi mundo fue con la muerte de Marlon Brando, diez años
atrás. La muerte todavía no me acariciaba como hoy, pero pasé algunos días postrada
por alguien que para mí ya había nacido inmortal. Percibí entonces que era diferente
recordarlo berreando “Steeeeeeeela” en “Un tranvía llamado deseo y, al mismo
tiempo, poder mencionar cualquier cosa boba como: “Pucha, como está gordo ahora”.
De repente, él no podía engordar más ni espantarnos con su existencia
descuidada. Solo quedaría lo grandioso. Y, por lo tanto, fuera de la vida. (De
nuestra vida.)
Marlon Brando, como García Márquez, como
Ariano Suassuna, como tantos ahora, no sabían que eran míos, pero lo eran. Al
dejarme, muero un poco. Una versión de nosotros muere siempre que muere alguien
que amamos y que nos ama, porque esa persona se lleva con ella su forma de
mirarnos, que es única. Una parte de nosotros también muere cuando no podemos
compartir más la misma época con quien hizo de nuestro mundo lo que él es. Y ahora,
me quedo esperando a cada momento una nueva noticia, porque sé que ellas no
llegarán nunca más.
Tuve una reacción extraña al saber de la
muerte de Robin Williams. ¿Cuantos años tenía?, pregunté primero. Sesenta y
tres. Y me sentí apuñalada con la respuesta. Muy temprano, muy pronto. ¿De qué
murió? Parece que fue suicidio. Y me sentí de inmediato aliviada. Puede parecer
sorprendente, pero me sentí aliviada porque de que alguna manera era una
elección. No era el corazón, no era cáncer, no era AVC, no era avión. Por más
terrible que sea el acto de interrumpir la vida, él presupone, en alguna
medida, una potencia y un control.
Al mismo tiempo en que la muerte devuelve a
aquellos que admiramos a la condición humana, los saca de ella para siempre
Se puede argumentar que una depresión o la
desesperación impiden la elección, pero creo que esa no es toda la verdad. Nuestras
elecciones nunca son consumadas en condiciones ideales ni nuestro arbitrio es
totalmente libre. Solo conseguimos efectuar
elecciones determinadas por las circunstancias que vivimos y por lo que
somos en aquel momento. Por más que nos sorprenda la oscuridad del hombre que
nos dio tanta alegría, de algún modo él eligió la hora de morir. Lo que para
muchos fue la razón para aumentar el dolor por su muerte, porque ella podría
haber sido evitada, para mí fue un alivio por él no haber interrumpido su vida
por rebeldía. De algún modo, me sonaría más insoportable si Robin Williams hubiera
muerto tan joven por un infarto o un accidente.
Creo más en la interpretación del
periodista americano Lee Siegel, cuando él dice que “talvez haya sido la empatía
que lo mató – y no su desesperación con el diagnóstico reciente de Parkinson”. La
capacidad de Robin Williams para vestir la piel del otro, de todos los otros, llevada
por él a niveles casi insuperables. “Su necesidad pasional de transformarse en
todos que él encontraba, cualquiera que fuera su origen étnico o social – como
si con eso pudiese vencer su solitaria e irreversible finitud humana.” Hace algún
tiempo el lento morir de su mundo lo asombraba, según los más próximos Robin parecía
incapaz de superar la desaparición del amigo y del hombre que lo inspiró, el
comediante Jonathan Winters, que se fue en abril.
Sus fans, las personas cuya vida su vida
hizo mejor, dejaron flores en los lugares en que vivieron sus personajes. Un
banco de plaza en que grabó escenas de El Genio Indomable, con Matt Damon. La
casa en que fue Ms. Doubtfire, la niñera. Era allí que él moría para nunca morir.
Era allí donde él jamás dejaría de estar. No hay lugar para la muerte. ¿Cómo podría
haber lugar para la muerte? Pero es preciso dar un lugar a la muerte para que la
vida pueda continuar. Es para eso que creamos nuestros cementerios dentro o
fuera de nosotros. En general, más adentro que afuera. La vida es también cargar
los muertos en el último lugar en que pueden vivir, en nuestras memorias. Y
lentamente nos transformamos en un cementerio cada vez más habitado por
aquellos que solo viven en nosotros.
La muerte de Robin Williams, Gabriel García
Márquez, Ariano Suassuna y de tantos otros se llevó un poco de mí. Mi muerte llevará
un poco de ellos y de tantos, como el recuerdo de las lágrimas que lloré al ver
La sociedad de los poetas muertos o la imagen de Aureliano Buendía que solo yo
tenía o mi piedra del reino. Muero un poco con cada uno de ellos porque viví un
poco con cada uno de ellos.
Es esa la muerte silenciosa que se va extendiendo
por los días. Cuento mis inmortales todavía vivos, los de lejos y los de cerca.
Digo sus nombres, como si los invocase. Pido que no se apuren, que no me dejen
sola, que no me dejen sin saber de mí. El acaso, la vida que cambia en un
instante, me asusta tanto cuanto este mi mundo que muere lentamente. Es esa la
brisa casi imperceptible que adivino soplando en mis huesos. Muchas veces finjo
que no la escucho. Pero ella continúa allí, intermitente, susurrando para que yo
no me olvide de vivir.